Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Com o Flamengo no Sertão

COM O FLAMENGO NO SERTÃO


Com o ZICO  jogando e começando a arrebentar, não dava mais pra parar. Onde o Flamengo estava eu ia atrás. Os amigos mais chegados tinham uma inveja do cão, mas cadê coragem? Quando convidava algum para me acompanhar, o mínimo que eu ouvia é que eu era maluco e era caso de internação no Pinel (hospital de loucos aqui do Rio).

Pelos idos de 1973 eu e dois amigos, Guilherme e Fofão (Henrique, gordinho, mas gente finíssima), fizemos a primeira viagem, viagem não,  loucura,  para ver um jogo do Flamengo. Primeira para mim, primeira e última para os dois. Os caras, depois do que passamos, nunca mais foram assistir a um jogo de futebol e, pior, nunca mais me dirigiram a palavra, tamanho foi o trauma.

Estávamos em pleno governo da ARENA - o maior partido do ocidente - e era comum os políticos obrigarem os grandes times do Sul a jogarem nos lugares mais longínquos para colherem uns votos. Coisa da ditadura, que não mudou muito na democracia. O Flamengo foi fazer o que se chama de bye-bye Brasil, jogando na Bahia, Pernambuco e Paraíba. Resolvemos ir de carro acompanhar os jogos.

Foi um inferno. Quase morremos. As estradas eram ruins e a comida pior ainda; em resumo: uma merda. Para piorar, os dois "amigos" eram garotos mimados, acostumados a mordomias, desses que tentam fazer uma aventura na vida, mas não agüentam o rojão. Aquilo para eles era o fim do mundo e não havia nada que não fosse motivo de reclamação.

Saímos do Rio numa sexta-feira rumo a Salvador, local do primeiro jogo, que seria no domingo seguinte. Foram mais de vinte e quatro horas de viagem. Como era ainda o começo, tudo correu bem. Depois de Salvador, Pernambuco. Aí, a coisa começou a pegar. A viagem ficou muito mais difícil em estradas esburacadas. O dinheiro era curto e estávamos economizando em tudo. Basta dizer que chegamos ao Rio quatro quilos mais magros. Mesmo se tivéssemos dinheiro para comer, não havia muita oferta nas estradas. Então, a maior parte da viagem era feita com fome, comendo biscoito velho. A cada momento um dos dois achava uma razão para me xingar. Ficaram tão bons nisso que resolveram revezar. Primeiro vinha o Fofão.

- Que merda, esse buraco quase quebra a suspensão! Seu macaco miserável, a culpa é toda sua. Quando chegar ao Rio, a primeira coisa que eu vou fazer é te matar!

Essa era a deixa para o Guilherme:

- E quem disse que ele vai voltar vivo? Nós vamos deixar você secar aqui no sertão, seu crioulo miserável!

Eu quietinho. Pianinho. Não dava nem para reclamar. Fazer o quê? Os caras queriam me matar, pô! Pelo menos o Flamengo ia vencendo, o que amenizava a tensão. Na hora dos jogos tudo voltava a ser festa; a paixão era maior que a frescura.

Enveredando pelos sertões da Paraíba, rumo a Campina Grande, já não abria minha boca no carro. Era eu falar e o festival começar: "seu isso, seu aquilo, a culpa é sua etc.". Depois do último jogo pegamos direto a estrada de volta. Salvo as paradas para descansar, ninguém queria outra coisa senão o conforto de um apartamento de classe média em Copacabana. Até a metade do caminho tudo corria bem. Para ganhar tempo dirigíamos também de madrugada, e foi justamente numa dessas que o carro pifou. Ficou assim, mortinho, no meio da estrada.

Foi uma loucura! Ninguém sabia o que havia acontecido e a escuridão era tanta que não dava nem para meter o dedo no olho. Obviamente, estávamos morrendo de fome. Comeríamos até uma coruja que passasse por lá desavisada – com pena e tudo. Particularmente, estava com medo dos meus amigos, que já não faziam nenhuma força para esconder o ódio que nutriam pelo cara que os colocou em tamanha furada...

Nosso dois "mecânicos" mexeram na caranga, e nada. Só mesmo um mecânico  para dar jeito no problema. Foi quando eu disse:

- Galera, posso dar uma sugestão?

E eles, em uníssono:

- Nããããão... cala a boca desgraçado, que por tua causa nós vamos morrer aqui, seu macaco filho da puta.

Fofão já falou isso chorando. Um babaca... Seria cômico, se não fosse trágico, o espetáculo dos dois manés dando porrada no carro, como se o pobre coitado fosse culpado de alguma coisa...

Mesmo sem eles deixarem eu falei:

- Vocês têm que relaxar. Vamos dormir dentro do carro e esperar amanhecer para procurarmos ajuda.

Babando de ódio, mas contidos, eles aceitaram a minha sugestão. Empurramos o carro para fora da estrada e nos ajeitamos dentro para dormir. Por volta das cinco da manhã, o dia já amanhecendo, ouvimos um galo cantar. Eu acordei e levantei de um salto só:

- Galera, deve ter uma casa aqui por perto... Tem um galo cantando. Vocês fiquem aqui que eu vou procurar ajuda.

- O caralho! Onde tu for nós vamos atrás - berrou Guilherme, ainda sonolento.

- Mas o carro não pode ficar só...Nossas malas....

Como sempre se revezando, foi a vez do Fofão (dono do carro) falar:

- Foda-se! Dane-se o carro, roupas, o caralho. Depois eu compro outro. Eu não quero é morrer...

Eu, de saco cheio, concordei:

- bom. Fecha essa porra e vamos lá.

Saímos para procurar ajuda. Andamos uns mil metros até avistarmos uma luzinha de lampião numa casa bem humilde, feita de barro, e largada no meio do mato. Na frente do casebre devia ter um milhão de cachorros vira-latas latindo, num esporro de fazer inveja ao Maracanã lotado. Atrás da multidão canina, um caboclo de aproximadamente 50 anos segurava um lampião e nos olhava desconfiado.

Me adiantei, como o "líder" do grupo, e perguntei:

- O senhor pode nos ajudar?

O caboclo, dando-me uma aula de civilidade:

- Bom dia, moço. Claro que vou ajudar. Na minha casa todo mundo é bem-vindo.

- Nós estamos viajando para o Rio e o carro quebrou na estrada. O senhor conhece algum mecânico por essas bandas? - perguntou o Guilherme, ignorando o bom-dia educado do caboclo.

- Vixe... Conheço o Zezinho lá do Posto. Mas tem que esperar clarear o dia para “chamar ele”.
- Graça a Deus. É longe daqui? - agora era a vez do Fofão perguntar.

- É não moço; fica a umas dez léguas daqui. Mas se preocupa não. De manhã cedo mando meu filho “ chamar ele”.

O Guilherme pediu:

- O senhor pode me arranjar um pouco d’água, alguma coisa pra comer...? Estamos com uma fome...

- Oxente...na minha casa ninguém passa fome caba...! Água oncês podem beber aí - e apontou para o riacho que corria em frente à casa. - Eu vou buscar uma caneca...

Ele entrou em casa e nós ficamos olhando um para a cara do outro, até o Fofão se pronunciar:

- Será que essa água é limpa?

- Se não for, vai passar a ser. Não vou é morrer de sede - respondi. Nisso, a caneca (feita de alumínio) chegou e foi um avanço. Bebi três copos sem respirar, no que fui imitado pelos outros.

A mulher do anfitrião já estava preparando uns "beijus" - uma espécie de bolo feito de farinha - e nos serviu com café. Uma festa. Um manjar dos deuses.

Logo após o café nós voltamos ao carro, acompanhados do caboclo e de dois filhos, que nos ajudaram a empurrá-lo até a frente da casa deles. Um dos filhos foi buscar o mecânico. Enquanto esperávamos, o caboclo (que ninguém lembrou de perguntar o nome) foi numa espécie de curral e trouxe um bicho que tinha chifre, rabo, quatro pernas e couro. Não sei se era bode, ovelha, cabra, cabrito, ou o diabo que fosse. Pegou o animal pelo chifre e deu-lhe uma porrada na cabeça com um machado. Depois, enfiou um punhal no seu pescoço e o sangue jorrou. O bicho estrebuchava de um lado e nós do outro...Era um tal de neguinho vomitar...

O caboclo não agüentou e falou:

- Vixe Maria... Gente da cidade é tudo frouxo. Nunca viram matar um animal não é? Isso é que vai ser a comida de vocês. Vou mandar fazer um "frito" para vocês comerem na viagem (o tal  "frito" era  uma espécie de farofa com uns pedaços do “defunto”).

Depois que o bicho morreu ele tirou o couro, fez uma fogueira e começou a assar aquela coisa. Enquanto o animal assava, o mecânico chegou e deu um jeito no nosso carro. Por volta de 12 horas estávamos prontos para pegar a estrada e voltar para nossa casa. Aí apareceu o caboclo com um vasilhame com o nosso almoço - o "frito" - e com uma caçamba de água. Nos despedimos, agradecendo à grande força que aquela humilde família nos deu, e partimos.

Já no carro, veio a "ordem" do Fofão:

- Joga fora essa porra de comida. Eu nunca vou comer disso.

Com a cabeça balançando, Guilherme concordava que seria melhor morrer de fome do que comer aquilo. Enquanto eles questionavam a qualidade do menu, eu, sem cerimônia, meti a mão na vasilha e comi.

- Delicioso! Claro que fui xingado pela milésima vez.

Depois que eu provei, o Fofão (que honrava o nome) experimentou e gostou. Então foi a vez do Guilherme – Bom, né!!! Aí, paramos o carro e começamos a comer a gororoba como uns loucos. Com a fome que estávamos...A cena era cômica: um carro com placa do Rio de Janeiro parado no acostamento de uma estrada, lá onde Deus perdeu as botas; três mauricinhos cariocas trocando os restaurantes da Zona Sul pelo chão do sertão baiano; e comendo uma massa disforme com a mão. Deus devia estar rindo, prevendo o resultado da comilança. Para piorar, a cada mãozada no "frito", tomávamos uns dez goles d'água. Água, farofa, água, e a barriga inchando...

Voltamos para a estrada, meio que de porre de tanto "frito", e começamos a ouvir uns trovões. Guilherme, irritado, berrou:

- É, só faltava chover agora, em pleno sertão!

Fofão dessa vez não falou nada, só gemeu baixinho:

- Não é trovão não, é meu estômago. Pára o carro...

A partir daí, foi um tal de parar na estrada pra ir ao banheiro - se bem que banheiro é força de expressão. Qualquer lugar servia, nem que fosse atrás de qualquer moita. Em pouco tempo acabou o papel higiênico. Passamos para o jornal, depois as revistas do carro, as meias, e até as cuecas. Chegamos ao Rio mal podendo sentar, com a bunda em carne viva.