Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Campeonato Brasileiro - 1982

DE RECIFE A PORTO ALEGRE - CAMPEONATO BRASILEIRO DE 82


Flamengo e Sport do Recife, semifinais do Campeonato Brasileiro de 83. Cada jogo era uma guerra, já que todos queriam ganhar do Flamengo. Fomos eu, Zé Carlos, Nelsinho e o saudoso Marquinho neguinho. Pegamos o avião de manhã e voltaríamos à noite, após o jogo, no famoso "corujão" - aquele vôo da Transbrasil, pé-duro e barriga vazia, que fazia todo o Nordeste de madrugada. Gente, a porra do avião não podia ver uma pista que pimpa... aterrizava.... Caraca, o vôo demorava 12 horas... um inferno...

O gerente da Embrafilme, em Pernambuco, meu amigo Josué, foi nos esperar no aeroporto e nos levou até o hotel da delegação. Ficou combinado que ele nos daria carona na volta, já que o vôo era à meia-noite e o jogo deveria acabar umas onze horas. Era sair do estádio e correr para o aeroporto.

Do Rio eu tinha ligado para o Rogeraldo, chefe da torcida FLA-NEGO, de João Pessoa. Ele me disse que ia levar dois ônibus com a torcida dele. Ficou também de conseguir segurança para a gente.

Fomos para a Ilha do Retiro, tranqüilos. O clima estava tenso, mas a polícia tinha deixado um lugar reservado para a torcida do Flamengo. Até aí, tudo bem. Estávamos mais do que acostumados ao sufoco. Só que a FLA-NEGO não apareceu para ocupar o espaço e o povão foi apertando... Apertando...À medida que ia se aproximando o início do jogo, o clima também esquentava. Quente é uma forma de falar. Um caldeirão. Perto de onde estávamos, vi um cara com uma faca, limpando as unhas. De vez em quando, ele brandia a “bicha” em nossa direção e dizia acintosamente:

- Esses paraibanos, em vez de torcer pelos times do Nordeste, ficam aí torcendo pelos cariocas frescos.

O desgraçado do Zé, que não pode ficar calado, ouviu e berrou para o cara:

- Paraíba é a puta que o pariu, ô cabeça chata... Nós somos é do Rio.

Para quê o idiota foi dizer isso, eu não sei. Só sei que a coisa ficou mais feia. O dono da faca revidou, com todo aquele sotaque:

- Carioca é fresco mesmo e forgado... Vem aqui que eu vou meter a faca no teu bucho! Todinha...E caiu na gargalhada!!!

A partir daí, o bicho pegou. Era um xingando o outro; a polícia chegou e, de alguma forma, estava nos protegendo, pedindo calma, tentando serenar a situação. Mas estava difícil. Porra, para eles era uma situação única. Qual a chance que eles teriam novamente de chegar a uma semifinal do Campeonato Brasileiro? E a imprensa de lá jogou toda uma carga emocional na torcida. Era questão de vida ou morte pra eles  ganharem aquele jogo.

O Nelsinho, cagão como ele só, estava apavorado, queria até ir embora:

- Moraes, vamos embora. Nós vamos morrer aqui.

- Tu não é homem não, porra!? - reagia o Marquinho neguinho, indignado.
- Vamos arranjar uns paus e sair na porrada com eles...Vamos pra cima, vamos...

Vejam só: éramos quatro do Rio, e mais meia dúzia de paraibanos e pernambucanos, a maioria mulher e criança. Seria uma carnificina. O Josué me disse:

- Moraes, a coisa tá muito feia. Não vou ficar aqui de jeito nenhum. Você sabe onde o carro tá, né? Eu vou pra lá. Se a coisa esquentar (mais quente?!), vocês correm para o carro, viu?! - e se mandou.

E a polícia ajudando e protegendo. Veio o responsável pela segurança e sugeriu que fôssemos para as cadeiras. Aí chegou a FLA-NEGO. Umas 30 cabeças (pelo menos, não morreríamos sozinhos...). Devido à quantidade de pessoas, foi “abortada” a solução das cadeiras. Fizeram um cordão de isolamento e ficamos ali mesmo. Mas o Zé não tinha esgotado o estoque de idiotice. No auge da confusão ele me berra, com todos os pulmões:

- Seus miseráveis! Seus mortos de fome! Não vamos mais fazer campanha para arranjar alimentos para vocês, seus putos. Vocês vão morrer de sede e fome na seca ou na enchente, seus merdas!

Depois dessa, até a polícia se retirou. Os caras partiram para cima. Tivemos de correr... E muito...Tiramos as camisas do Flamengo e jogamos fora. Por sorte, ainda conseguimos ficar os quatro juntos. Assistimos ao jogo do outro lado da confusão, no meio da torcida deles, sem falar uma palavra. Nos entendíamos pelo olhar.

Quanto ao jogo, fui um sufoco também. O empate classificava o Flamengo, e empatamos de 2 a 2. No último minuto o Juiz anulou um gol legítimo deles. Terminada a partida, corremos para o carro e fomos para o aeroporto, todos brancos de medo.

No avião eu não agüentei e perguntei ao Zé Carlos:

- Você fala esse monte de merda só para se divertir ou é estupidez mesmo?!

E ele, agora mais calmo, respondeu:

- Que é isso, Chefia!...Tem que falar, gritar, animar um pouco a situação. Agora nós já temos mais uma história para contar. Quem sabe, um dia, a gente não escreve um livro?

De tão revoltado fui sentar em outra poltrona, longe dele, para dormir. Mas bem que o puto me deu uma idéia...

O Campeonato Brasileiro é sempre uma maratona, e tanto torcedor quanto jogador acabam vivendo um entra e sai de avião, ônibus e hotel, que não dá nem para lembrar de onde fomos e o que fizemos. Uma vez ou outra um jogo fica na memória, como o de Recife ou, é lógico, uma final.

A decisão contra o Grêmio seria em duas partidas, com a possibilidade de uma terceira, no caso de empate nas anteriores. Primeiro jogo, no Maracanã: 1 a 1; segundo jogo, em Porto Alegre: 0 a 0; e fomos jogar um tudo ou nada, numa terceira partida, também em Porto Alegre.

Nesse jogo me aconteceu uma coisa que jamais vou esquecer. Pouco antes do início da partida, aquela agitação e tumulto, me sentei com o Zé na arquibancada do Olímpico, na parte reservada para a torcida do Flamengo. Ficamos o mais longe possível da galera, que só queria ficar perto dos torcedores do Grêmio, para arrumar confusão, porrada etc. Nós só queríamos sofrer mais sossegados. Quando o juiz apitou o início do jogo, sentou-se ao meu lado, me empurrando, uma senhora negra, com o cabelo todo desgrenhado, e um odor brabo (como fedia!!!). Ela me deu um tapa nas costas, com toda a força possível, e falou:

- Se preocupa não, neguinho... Vamos ganhar essa porra... Eu prometi o meu sangue pela vitória... E vou dá... - ato contínuo, meteu as unhas longas e sujas no braço até se ferir e o sangue jorrar.

Eu e o Zé ficamos olhando um para a cara do outro. Não entendemos nada. E o sangue da “negona” jorrando... Aquela cena parecia coisa de cinema, mas era verídica. Quando o Flamengo atacava (e foram poucos ataques), ela falava coisas incompreensíveis. Em compensação, quando o Grêmio pegava na bola, ela, como se possuída por alguma entidade dizia:

- Tu tá amarrado, diabo. Tu tá amarrado. Ninguém é mais forte que meu sangue... Ninguém - e repetia o ritual de sangramento.

Eu nunca vi coisa igual. Parecia até um sonho. Eu não sabia se olhava para o jogo ou para “a minha amiga”. Uma mistura de pena, nojo, preocupação, sei lá... Aí o Flamengo fez 1 a 0, e a coisa aumentou. Ela dizia coisas sem sentido (pareciam outro idioma), durante todo o primeiro tempo. Era para ficar apavorado. Quando acabou o primeiro tempo ela me olhou e disse:

- Moraes, não se preocupe que vamos ser campeões. Nós merecemos. Eu vou me lavar e volto já, porque no segundo tempo vai ser pior.

Quando ela saiu eu olhei para o Zé e perguntei:

- Você viu ou tô tendo uma visão?!

- Visão porra nenhuma. Ela existe. De onde tu conheces ela?!

- Nunca a vi na minha vida - respondi, assombrado e rindo. - Mas tomara que ela volte com mais sangue, porque agora é que o bicho vai pegar. Ela é espírita e deve tá com algum caboclo flamenguista .

Ríamos da desgraça alheia, mas, para ganhar o título dentro do Olímpico, valia qualquer coisa. O segundo tempo começou e nada da nossa "companheira". Não tive que esperar muito. Outra porrada nas minhas costas anunciou sua chegada. Repetiu o mesmo ritual, e sangrou o jogo todo.

Terminada a partida, ela se enxugou com a camisa do Flamengo e, com os olhos cheios de lágrimas, disse:

- Você pensou que eu fosse maluca, né? Num sou não. Eu amo muito o meu Mengão. Da mesma forma que você viaja por aí para ver os jogos, eu fico por aqui, porque não tenho dinheiro pra ir. Se tivesse, ia. Nós amamos a mesma coisa, e eu dei o meu sangue para ser campeão.

- Bicampeão! - corrigi, eufórico, e perguntei:

- Como é seu nome? Você mora no Rio? De onde você me conhece?!

Ela, tranqüila, respondeu:

- Eu te manjo não é de hoje. Você é uma lenda!!! Meu nome não interessa, nem onde eu moro. Só peço a você que nunca deixe de gostar do Mengão e nunca largue a Raça. Vou rezar sempre por você - e saiu.

Nunca mais a vi na minha vida.