Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Copa de 70 - México

COPA DO MUNDO DE 70 – MÉXICO

Tudo começou nas eliminatórias da Seleção Brasileira para a Copa de 70. Eu e um amigo, Mauro, fomos à Assunção (Paraguai) para assistir à partida contra o Paraguai. Ficamos hospedados no mesmo hotel da delegação brasileira. Na véspera do jogo, à noite, estávamos matando mosca à beira da piscina quando conheci o querido João Saldanha, o técnico na época. Ali começou uma amizade fraterna que durou até a sua morte.
Conversamos até altas horas (ele era um grande papo) sobre diversos assuntos, sobretudo futebol e política. Comunista de carteirinha, o João obviamente não podia se sentir à vontade com o regime militar da época.

Sobre futebol, duas coisas que ele falou me marcaram: a primeira foi sobre a Seleção. A certa altura, o João vira-se e diz:

- Neguinho, nós vamos ser campeões do mundo, no México. Não tem como perder. Esse grupo aí é quase o mesmo da Copa de 66, com Pelé, Tostão, Jairzinho, Gerson, Carlos Alberto, meu capitão, que não foi à Inglaterra sei lá porquê... Coisa de maluco... Mas está todo mundo aí, com uma vontade doida de ganhar e sem a empáfia daquela época. Comigo ou com qualquer outro, vamos ganhar. E você pode anotar aí, dificilmente vou ser o técnico na Copa... Os milicos não gostam de mim, o Médici então... Nem se fala.

- João, posso te fazer uma pergunta meio maluca?

- Claro! Só não pode falar da minha mãe!

- É sobre o Pelé! O negão não está jogando nada. Ele tá machucado?

Ele me olhou, pensou um pouco e mandou esta, na segunda resposta que nunca mais esqueci:

- Neguinho, o Pelé tá duro... É isso mesmo, o Negão tá duro...Os safados passaram a perna nele e deixaram ele liso e é por isso que ele não está jogando nada. Eu já falei pro Havelange resolver o problema do rapaz porque, comigo, só o nome não joga não. O Pelé é o maior jogador do mundo e não sou eu o maluco que vai questionar a capacidade técnica dele, mas ele tá duro e sem cabeça para jogar... Imagina isso, o maior jogador do mundo e durinho. Quem vai acreditar...? O pior é que aquele menino do Cruzeiro tá jogando um bolão...O Dirceu Lopes. Vai acabar tomando a vaga dele...

Eu arregalei os olhos e perguntei:

- Tu vai ter coragem de barrar o Pelé?!

- Coragem...? Vou barrar sim; contra a minha vontade eu mando o negão pro banco. O que não posso é perder uma Copa do Mundo por problemas extra-campo.

A história que se segue é conhecida. O João Saldanha não durou muito no comando da Seleção por causa dos problemas com os milicos e da vontade do Médici de escalar o time, com o Dario (Dadá Maravilha) no comando do ataque! O Zagalo assumiu, convocou o Dadá, mas manteve a base do time. Quanto ao Pelé, acho que ele deve ter resolvido seus problemas financeiros, haja visto o que o Negão jogou na Copa.

Dois meses antes da Copa do Mundo fui morar em San Diego, Califórnia. Lá conheci o Peter, um americano mais brasileiro que eu. Só falava do Brasil e do Rio, em especial. Seu maior sonho era vir morar no Rio, o que acabou acontecendo anos depois. Na época da Copa, resolvemos ir para Guadalajara (México). Por sorte, conseguimos vaga no hotel onde estava a Seleção. Foi fantástico. O gringo ficou maluco. Acordava às 6 da manhã e ficava no salão esperando os jogadores descerem para o café. Babava o ovo de todos eles. Era hilário.

A imprensa brasileira, como sempre, não acreditava no time. Sentava o pau e achava que não passaríamos da primeira fase, como aconteceu na Copa anterior (na Inglaterra). Os ingleses eram o time da moda. Campeões do Mundo. Uma marra. Particularmente, eu achava que seria uma barbada e em nenhum momento tive mede de perder a Copa (quem se lembra do jogo Brasil e Uruguai sabe que isso é um exagero!!!). Mas pô, tínhamos os melhores jogadores do mundo. Qual o time que podia juntar Pelé, Gerson (o grande gerente), Rivelino, Tostão, Jairzinho e Carlos Alberto? Impossível perder... Além disso, o “bicho papão” era a Inglaterra (Campeão do Mundo na época), com aquela jogadazinha aérea...

Em Guadalajara reencontrei o João Saldanha, que estava trabalhando como comentarista da Rádio Globo. Aliás, a aventura de Saldanha para entrar no México vale um livro inteiro (ele não podia entrar pelos EUA, porque os americanos não dariam o visto para um membro do PCB e a ditadura não queria que ele fosse trabalhar).

Ele me chamou e disse:

- Não te disse? Agora acredita? Vamos ganhar essa Copa de barbada! - no que concordei.

No dia do primeiro jogo, contra a Checoslováquia, fui para o estádio com o Peter e falei:

- Gringo, tá todo mundo no meu país contra a Seleção; já o povo mexicano é todo nosso. Dá para entender isso? Mas se a gente ganhar essa partida, e vamos ganhar, muda tudo, quer apostar?

Ele, arranhando um portunhol, falou:

- Vamos ganhar e mandar os gols para os jornalistas brasileiros enfiarem no cu... Depois eles vão elogiar todo mundo... Olha aqui ó ... - com a mão fechada mandava uma sonora banana para a tribuna de imprensa onde estavam os jornalistas.

O jogo começou e logo no início a Checoslováquia fez 1x0. O gringo me olhou e do alto do seu rico vocabulário, proferiu:

- Fudeu...

Tranqüilo, respondi:

- Calma Peter, vamos meter um chocolate neles. Esses caras não jogam nada... Espera...

Não deu outra: 4 x 1, e era para ser de dez. Ou pelo menos cinco, se a primeira das muitas jogadas antológicas do Pelé na Copa (aquela do chute do meio campo... inesquecível...) tivesse entrado. Conforme o previsto, a partir daquele dia, o time fraco e criticado passava a ser a grande sensação do mundial.

A partir daí a Seleção deslanchou e massacrou todos os adversários. Infelizmente, na época, eu era o perfeito mauricinho, e não ficava junto do povão. Assistia aos jogos da tribuna e, assim que terminavam, me mandava para o hotel. De qualquer jeito ia me divertindo, acompanhando o crescimento do time, cada vez mais perto do título. Até que veio o jogo contra o Uruguai. Esse foi o único jogo que deu medo para valer. É que eles tinham um timaço e, além disso, são nossos "inimigos" da América do Sul. Para piorar, 1950 era um passado próximo, e assustador.

Pela primeira vez na vida vi uma retranca tão fantástica. Pela vez primeira, no futebol, vi o dedo do técnico, que eu acreditava que só servia para entregar as camisas. O técnico do Uruguai recuou os 10 jogadores e adiantou um para marcar o Gerson no nosso campo, na intermediária. Acabou o time do Brasil. Apesar de todo o talento do Pelé, quem mandava no time dentro do campo era o "papagaio". Todas as jogadas saiam dos pés dele. A tática de marcá-lo era inteligente porque, nos outros jogos, o Gérson recebia a bola, almoçava, jantava, fazia a siesta e, só aí, fazia o lançamento, sempre perfeito, para o Negão ou o Jair. Contra o Uruguai, ele mal pegava na bola e o uruguaio já estava fungando no cangote dele. Aí entrou a inteligência do craque. O que o Gerson fez? Como não podia jogar, recuou para a cabeça de área e mandou o Clodoaldo se adiantar e armar as jogadas. O time melhorou um pouco. E o jogo, “ encardido”. Um lance antológico: o goleiro deles bateu mal um tiro de meta e a bola caiu na intermediária. O Pelé pegou de primeira. Não sei como o diabo do goleiro se recuperou e fez uma defesa de cinema, salvando um gol certo. E a adrenalina subindo... O “bicho” estava feio para o nosso lado.

Metade do primeiro tempo, o Félix (nosso goleiro), meio que dormindo, assiste à bola entrar. 1x0 Uruguai. E o Peter:

- Fudeu...

Pensei em matar o gringo: a maior adrenalina e o gringo só falava aquilo!!! Muito nervoso, respondi:

- É, a coisa tá feia... Se a gente não empatar ainda no primeiro tempo, um abraço...

Acabo de falar isso e o Uruguai perde o segundo gol, desses feito. Se aquela bola entra, nem Jesus Cristo dava jeito. Aí o Tostão começou a jogar. Ele estava mal nas partidas anteriores. Vinha de uma séria contusão (deslocamento da retina). Jogou uma partida razoável contra a Inglaterra (fez a jogada do gol) e fez dois gols contra o Peru. Fora disso, nada... O Tostão, juntamente com o Zico e o Maradona, foram os melhores jogadores que vi jogar, no sentido do passe longo rasteiro: aquele meio gol, mesmo se bater na canela do artilheiro. E, numa jogada genial dele, o Clodoaldo empatou aos 45 do primeiro tempo. Ufa! Ufa! Que alívio. Na volta para o segundo tempo, em mais uma jogada do Tostão, que meteu uma bola num passe de 50 metros, rasteirinho, para o Jairzinho... Saco... 2 x 1. Depois metemos mais um. Ganhos de 3 x 1. Ali ganhamos a Copa do Mundo.

Na final contra a Itália, só o que me interessava era saber de quanto ganharíamos. O jogo era só uma festa de entrega da Jules Rimet. Ganhamos de 4x1, com direito a chocolate. Após o jogo e as comemorações na Cidade do México, voltamos à América. Um mês depois desembarquei no Rio.

No Rio comecei a gostar da idéia de assistir aos jogos do Flamengo e da Seleção Brasileira fora do Maracanã. Quando convidava os amigos para me acompanhar era logo tratado como um débil mental, digno de ser internado com camisa de força. Cheguei a assistir a alguns jogos do Flamengo em São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Acompanhei ainda a Seleção em alguns torneios, sendo o principal um realizado nos Estados Unidos, em 1972.

Nessa época, o máximo que o Flamengo sonhava era ser campeão do recém criado Campeonato Brasileiro. No mais, era ir à rua Bariri, ou a Conselheiro Galvão e torcer pelo título estadual.

Mas, também nessa época, meu Deus – para quem rezo todos os dias, agradecendo a vida que me deu – provou de vez Sua condição de torcedor rubro-negro e que também era um grande gozador. Surgiu o ZICO. Virou zona. Jogava muito o cara. Com 18 anos já era um fenômeno. Além disso, junto com ele, todo o time de juniores do Flamengo. Só tinha fera. Uma geração maravilhosa que nos anos seguintes deu muitas alegrias à Nação Rubro-Negra. Quando o Fleitas Solich, técnico do Flamengo na época, escalou o Galo no time principal contra o Ceará, em Fortaleza, eu estava lá. Ele jogou na ponta direita e empatamos o jogo em OxO.

Todo mundo estava esperando a convocação do Zico para a Copa de 74, na Alemanha, mas o Zagalo achou que ele era muito novo e não o levou. Em compensação, o que foi de cabeça de bagre...

Com o surgimento do Zico, meu destino estava traçado pelas próximas duas décadas. Não havia mais como fugir do óbvio. Só me restava botar o pé na estrada e me preparar para as aventuras que estavam por vir.